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HIV/aids, racismo e diásporas: algumas considerações sobre as políticas globais de precarização

01/12/2018 às 00:32:26

A consideração que todas e todos estão fazendo sobre o atual momento político, social e econômico está girando em torno do pós-eleição. Para muitos, grupo no qual me enquadro, temos uma situação difícil desenhada no país com a eleição, e um período que marca o fim da Nova República para muitos cientistas sociais e analistas políticos, que é o que sustentou o pacto social entre os setores da sociedade, entre as classes dominantes e a sociedade civil, a classe trabalhadora.

No fundo, há uma grande ansiedade e dúvida, há muitas discussões na academia e na política, se teremos a partir de 2019 um período bonapartista autoritário, se teremos uma democracia com discurso macartista, se teremos neofascismo… Há quem acredite que o Estado Democrático de Direito não sofrerá um milímetro de alteração institucional, mas, felizmente ou infelizmente não faço parte desse grupo. No entanto, penso que exista mais coisas em jogo. Há um jogo a ser jogado com a sociedade civil, com os grupos de interesse, com os lobbys, com o Judiciário, com uma frente unitária em defesa da democracia, com as entidades da classe trabalhadora…

Nessa semana da Consciência Negra, em meio a tudo isso, já passado o aniversário de morte de Zumbi dos Palmares no 20 de novembro, fica latente a grande chaga social ainda existente em nossa sociedade, que é o racismo. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país, e esse mundo pode aumentar, haja vista a ideia cristalizada de que segurança pública se faz com mortes e encarceramento em massa, com cerco em favela e drones atirando quem tenha “cara de bandido”.

Quanto à epidemia de HIV/aids, ainda estamos no mesmo patamar do ano passado no que se refere à mortalidade por aids: 12 mil mortes anuais. No estado de São Paulo, ainda há a disparidade racial: as mulheres negras morrem 3 vezes mais, proporcionalmente, que o restante da população. Uma pessoa negra que vive com HIV ainda tem 2,4 vezes mais chances de adoecer de aids que uma pessoa branca.

Existe coisas sobre a questão racial e o HIV/aids em São Paulo e no país que eu posso simplesmente copiar e colar de dois artigos que escrevi para esta mesma Agência de Notícias da Aids, a saber: HIV e racismo: o estigma do vírus e as opressões históricas da população negra; e HIV/aids e racismo: a alta mortalidade da população negra em pauta. Mas hoje, somente hoje, eu quero falar de algo a mais, que faz parte da construção histórica não só do racismo, mas da nossa própria sociedade: as diásporas, os deslocamentos e as desarticulações intencionais. E o que representa os deslocamentos de populações inteiras, seja forçosamente, como no passado, para a escravização, seja na desarticulação e expulsão de quilombos e aldeias indígenas, seja no fluxo migratório de refugiados? O que isso representa para a população vivendo com HIV/aids?

Aqui na América do Sul nós tivemos esse ano um caso muito dramático com o colapso da Venezuela e o êxodo de uma parte importante de sua população numa fuga da pobreza extrema. A Argentina teve seu ministério da saúde com perda do status de ministério e a precipitação de situações de saques de lojas por muitas pessoas em busca de alimentos, conflitos sociais, greves seguidas, arrocho econômico, desemprego… Em Honduras saiu uma caravana de milhares de pessoas a caminho dos Estados Unidos, após uma crise institucional e social no país.

Na Venezuela, milhares de pessoas vivendo com HIV/aids foram obrigadas a emigrar para não morrer, diante do desabastecimento de remédios, e outras milhares morreram pelo caminho. A rota de diáspora de populações negras, ameríndias e latino-americanas em busca do tratamento do HIV/aids já é uma realidade em nosso continente. São deslocamentos de grupos imensos em busca de alimentação, emprego e serviços públicos. O Peru tem tido vários grupos ativistas denunciando racionamentos de medicações, dificuldade de ingresso no tratamento. A Argentina começa a causar preocupação sobre a manutenção de sua resposta à epidemia de HIV/aids.

Mas vão perguntar-me onde quero chegar com isso? O HIV tem se tornado motivo em muitos países para as pessoas buscarem rotas de migração e se colocarem em diáspora em busca de tratamento médico, na Ásia, na África e agora na América Latina. Existe uma precarização global em marcha com o neoliberalismo e o capitalismo racial, e para que essa precarização das relações de trabalho, da qualidade de vida e de direitos sociais e serviços não estoure as estruturas sociais, há um tolhimento do espaço para que os conflitos sociais sejam resolvidos no âmbito da política. Hpa, portanto, além da judicialização da vida, um aumento do aparato bélico, do controle militar dos territórios (prisões a céu aberto, Gaza é um bom exemplo) e um aumento nas mortes de populações.

As condições de vida da população estão piorando na medida em que a exploração do capital sobre o trabalho aumenta. Alguns autores como Achle Mbembe estão falando em “necropolítica”, ou “política da morte” para este período. É a política de precarização da vida, de destituição de direitos sociais conquistados no pós-guerra, a nível principalmente do Sul Global. E eu tendo a concordar com isso, relembrando que as populações historicamente oprimidas são as primeiras a sofrerem os revezes do avanço da exploração. As condições sociais, de moradia, de saneamento, de acesso ao trabalho, de acesso a serviços públicos vão ditar, para além da violência urbana e institucional, quais são as populações mais “morríveis”, mais afetadas pela política de morte. E nisso as pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA) estão mais vulneráveis globalmente, pois muitas dependem de políticas públicas para sobreviver, como é o caso do Brasil. Somos sim um setor mais sensível à estabilidade ou instabilidade social, política e estatal.

Houve uma transferência da cidadania para o consumo, ou seja, os direitos se transformam em serviços mercantilizados, que dependem do acesso através do poder aquisitivo e renda. E isso é uma sentença de morte ou de deslocamento para milhares de pessoas vivendo com HIV/aids no mundo. Porque dentro desta lógica de acesso via consumo, como pagar por medicações patenteadas extremamente caras? Isso torna as PVHA dependentes de cada portaria dos respectivos ministérios da saúde dos países, das políticas públicas (onde elas existem). E assim, as epidemias, que já são formas de genocídio de populações ao longo da História, agora também são formas de destituir do próprio território, do lugar, e a aids também começa a atuar como motivo de êxodo. O “lugar no mundo” perde o sentido nesse trânsito de competição pela vida.

E o que nós, PVHA brasileiras temos a ver com tudo isso? Aqui tem a medicação gratuita, assegurada pelo Sistema Único de Saúde, desde 1996, com a lei dos antirretrovirais. Nós doamos medicações para a Colômbia e ajudamos no abastecimento de medicações no Paraguai. Temos acordos com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e fomos pioneiros numa resposta pública e universal à epidemia de aids, o que nos faz, hoje, ter uma população de 800 mil pessoas vivendo com HIV/aids, o que sem o DIAHV (Departamento das IST/aids e Hepatites Virais) do Ministério da Saúde e sem os antirretrovirais já estaria com um quantitativo maior que 2 milhões de pessoas. Como já escrevi em outros artigos, o Brasil atualmente vive uma inequação, algo que não se fecha, uma conta que não bate: ter tantos avanços, tantas garantias, tratamento universal e ainda assim muitas mortes por aids sobretudo na população negra e pobre. Mas a questão que mais deve nos deixar atentas é justamente a precarização global que começa a dar sinais de estar batendo com sua onda em nossa sociedade. E não enxergar que a água já está batendo forte em nós pode nos imobilizar, ser pegos de surpresa.

O SUS está ameaçado, sim. Há dois anos foi aprovado o teto dos gastos públicos por vinte anos na emenda constitucional 95, o que vai tirar cerca de 740 bilhões do orçamento da saúde. O reajuste do investimento não será proporcional ao crescimento da população e das necessidades dela. Nós não temos mais os blocos de investimento que garantiam verbas carimbadas, específicas para cada área. O SUS funcionava de acordo com 5 blocos de investimentos que faziam o chamado repasse “funfo a fundo”, regulamentado pela portaria 204 de 2007, até que a portaria 3992 de dezembro de 2017 dissolveu os cinco blocos (que concentrava a atenção básica, a assistência, a média e alta complexidade ambulatorial/hospitalar, a vigilância em saúde e o investimento em saúde) para criação de somente dois blocos, de custeio e de investimento, que dão amplos poderes de manuseio dos recursos aos estados e municípios. Por si só isso já deixa o recurso à mercê de qual grupo está no poder. Outro exemplo de ameaça do SUS é a portaria 3659 do dia 14/11/18 do Ministério da Saúde apresenta uma lista de 11 páginas de serviços de saúde mental que tiveram verba cortada pros próximos seis meses alegando falta de cadastro de dados. Ou seja, o maior receio não é o da extinção de tratamentos ou de leis, como a dos antirretrovirais. A precarização no mundo tem se dado pelo desabastecimento, pelo fechamento de serviços, pela retirada de direitos via verbas, recursos. Pelo desmonte. Pelo certo. Pelo impedimento de se locomover, se articular, se manifestar…

Me parece que a partir de agora precisamos olhar todos os dias o Diário Oficial da União à espera de uma novidade ou do Gabinete de Segurança Institucional, ou do Ministério da Saúde, ou do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para verificar se direitos sociais e até mesmo individuais ainda nos são assegurados. E talvez a pergunta que paira o leitor seja: qual o motivo de um ativista e cientista social escrever tudo isso? Quer alarmar todo mundo? Não se trata disso. Trata-se de termos noção do xadrez que estamos jogando. Dimensão da profundidade do jogo que está sendo jogado agora na geopolítica mundial e no nosso país, e como a aids e as epidemias estão no meio de tudo isso, e mais: como nós, PVHAs, podemos traçar estratégias de sobrevivência intra e extra-territorial. Como evitar de sermos a próxima Venezuela? Lá são 150 mil pessoas vivendo com HIV/aids ou emigrando ou morrendo. Aqui nós somos 800 mil pessoas. Já pensou o drama que seria esse colapso em nosso Departamento de Aids? Já imaginou o que está em jogo agora, nesse momento, na América Latina? Imagina a responsabilidade para toda a região que tem agora o Brasil? Que temos nós?

É disso que estou falando. É necessário sairmos da lógica das cátedras ou da fragmentação neoliberal competitiva, e resgatarmos a quilombagem como estratégia ancestral de sobrevivência e rebeldia nos últimos 518 anos. Precisamos agir politicamente, fortalecendo todas as entidades já existentes da classe trabalhadora, dos movimentos sociais, da saúde pública, nos unir dentro e fora do movimento social de aids, nos unir com os trabalhadores e gestores da saúde comprometidos com a manutenção do Sistema Único de Saúde, o maior sistema público do mundo todo.

Os conselhos municipais e estaduais de saúde precisam ser ocupados não só por ativistas e ONGs, mas pelos usuários também, por quem toma o seu dolutegravir, o seu efavirenz, a sua lamivudina, porque se o DIAHV fecha, somos todas nós, PVHAs, que teremos entregues à política de morte. Precisamos evitar uma tragédia, e para isso, não podemos tergiversar, hesitar. Ao menos que você tenha R$ 2.288 reais todo mês para pagar no frasco de dolutegravir (e só falo dele, “ta okay?”) ou de seu nome comercial, o Tivicay, você precisa da distribuição gratuita. E mesmo para quem pode pagar, é importante salientar que muita coisa é o SUS quem faz, que não há como ser absorvido todos os serviços pela saúde suplementar. É necessário lembrar do poema de Brecht: de tanto não se importar com quem era levado por não pertencer àquele grupo, na hora em que vierem me buscar, pode não haver quem se importe ou quem possa nos ajudar. Façamos a quilombagem, portanto, enquanto há tempo, enquanto há o que defender.

* Carlos Henrique de Oliveira é escritor, mestrando em Ciências Humanas e Sociais, ativista do coletivo Loka de Efavirenz, da Rede de Jovens São Paulo Positivo e da Resistência/PSOL.

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